REBIMBA O MALHO

REBIMBA O MALHO

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A MORTE FICOU-LHE A MATAR - (ÚLTIMO CAPÍTULO)

     A MORTE FICOU-LHE A MATAR - (ÚLTIMO CAPÍTULO)     
         
        Chegou o padre Manuel de sobrepeliz, estola roxa e, nas mãos, o livrinho das orações e o terço do rosário. O padre Manuel, homem alto e nédio vinha acolitado pelo Falhinho que levava presa numa das mãos a caldeirinha da água benta com o respectivo hissope e na outra mão a campainha presa pelo badalo não fosse ela tocar a destempo. O Falhinho de cabelo cor da seara pronta a ser segada, era um pobre rapaz que tinha por hábito de se servir da manga do casaco puído, para limpar as ventas mucosas. Na falta de mangas, usava a costa da mão que por sua vez ia direita à perna das calças.
         O padre Manuel aproximou-se e, parou aos pés da defunta. Depois de uma breve oração, ripou do hissope bem ensopado que o Falhinho atento lhe facilitou.
         - É a última auga que tchupas – disse o acólito. Mas, não foi assim. O padre no momento de aspergir, dá de caras com a felicidade da morta e, é com um solavanco, por querer reprimir o riso, que a água benta passa a rasar o corpo da menina Efigénia e vai pespegar-se na cabeça descabelada do Evaristo que estava sentado à cabeceira da falecida.
         Ora, o Evaristo, homem bilioso, tomou aquele desconchavo como uma afronta. Levantou-se impetuoso para ripostar mas, refreou-se quando viu estampada na cara do eclesiástico a aflição e um pedido de desculpas feito através de uma pequena vénia. Desta forma, deu-se por desafrontado. Sentou-se, puxou do lenço listrado e, ao mesmo tempo que enxugava a calva, ia murmurando: - Tiveste que te agatchar, filho de quatro nalgas.
         Sanado este incidente, os presentes aconchegaram-se para fazerem um lugarzinho para o senhor prior. O Falhinho colou-se à sua ilharga não largando por nada as suas alfaias.
         Iniciou-se a recitação do terço e, quando já iam dedilhadas quatro dezenas, apareceu a Maria Sem Pescoço uma das protegidas da que foi sempre menina. Não se incomodando com a toada da reza, disse em voz alta o que lhe ia na alma: - Atão menina Fgénia, deitxou-nos assim sem mais nem outra; coitadinha, tão boa, tão santa, era o que se pode chamar um anjo. Merecia inté que Nosso Senhor lhe tivesse posto umas asinhas presas nas costas.
         O Falhinho que tinha os olhos e ouvidos lampeiros, não se conteve. Com as fuças emolduradas por um sorriso alarve que deixava à mira duas dentolas intimadoras e capazes de traçar um bom naco de broa em menos de uma Avé Maria, ripostou: - As asas fetchou-as e entalou-as debaitcho do…
O Perna D’Aço que não era para brincadeiras e que ultimamente andava com os azeites por ter que usar um colete ortopédico a fim de lhe endireitar o espinhaço, evitou que saísse asneira. Estando atrás do Falhinho, sentenciou-lhe: - Cala-te cabrão! Se falas no cu da velha, arranco-te das patas a caldeira das benzeduras e dou-te com ela tantas vezes, até te ratchar esses cornos.
         O coitado do rapaz, de corado se fez verde passando pelo amarelo e, até a caldeirinha tremelicou.
         Mas, a Ti Rabeia das Virtudes que além de ser vendedeira, boa alma, e apaziguadora das excitações do rapazio do lugar, ouviu a reprimenda e advogou: - Parece impossível! Ora agora mai esta, ficava o rapaz, coitadinho, ratchado e mal pago, só por ter a alembrança de dizer onde a menina poderia ter as asas.
         O Perna D’Aço ia a ripostar se não fosse a pronta intervenção do padre Manuel que para isso deixou em meio um Pai Nosso: - Então, haja mais compostura, honremos e respeitemos quem partiu desta vida.
         Assim se pazearam os ânimos. O terço terminou e como era chegada a hora, começaram a preparar a menina Efigénia, para ser levada à última morada que distava uma meia hora em passo cadenciado.
         À porta, já esperavam três irmãos das almas com o respectivo estandarte. Eram eles o Colhouço que era o porta-estandarte, a ladearem-no segurando nos cordões estavam o Zé Panaita ainda arrimado à sua muleta e o Ti Manel João, tendeiro.
         Não haveria nada de peculiar nestas três personagens, se não tivessem em comum, o mesmo defeito físico: todos eles eram coxos mas, coxos a valer. O mais torto, o que mais se evidenciava, era o Ti Manel João que a cada passada ao apoiar-se na perna manca, dava mesmo a ideia que ia ruir.
         O cortejo fúnebre organizou-se: na vanguarda ia o Falhinho que fazia vibrar a sineta a cada pé de passada, ao mesmo tempo que pontapeava todo o seixo reboludo que estivesse ao alcance das suas botas de ver o sebo, brochadas e com a biqueira empinada a espreitar o Céu. Seguia-se-lhe o padre que orientava as orações durante o percurso. A irmandade depois e, antes dos acompanhantes, o féretro. Este, segundo o hábito naquela aldeia, era transportado numa carreta e o caixão ia destapado para que o povo pudesse pela última vez, ver a face do irmão que partira.
         O estandarte das almas, lá ia adejando numa louca tormenta sacudido impiedosamente pelos sacões descoordenados transmitidos pelos três chanquetas.
         Quem não despregava os olhos da bandeira, era o Rebola Caixotes que se destacava pela sua gaforina em remoinho e a carcela das calças por abotoar de onde assomava timidamente parte das ceroulas de flanela. Às tantas, não se conteve e vaticinou para o Redolho com um ar assacanado: - Cá para mim, aqueles cotchambetas dum catano, ainda fazem com que as almas se despeguem da bandeira e venham sacudidas por’i abaitcho afocinhando no tchão. Enquanto o Redolho ria a bom rir com o dichote pondo às escâncaras os dentes irregulares e que o tempo se encarregara de os forrar com uma cor fuliginosa. O Palpito, criatura possante e de farta trunfa, estava por perto e teve que dizer das suas: - Merecias que te fosse às ventas seu filho da puta. Já não há respeito nem num acto destes?
         O Redolho bem como o Rebola Caixotes acharam por bem não retorquir tanto mais, que viram como ao Palpito lhe fremiam as aletas do apêndice nasal e quando isto acontecia era sinal que estava prestes a soltar o seu génio violento.
         De ambos os lados da estrada, estavam muitos populares que não se tinham incorporado no préstito que lá caminhava às vezes por caminhos acidentados. Tanto assim, que o corpo da menina Efigénia com os solavancos até parecia ter movimento próprio.
         Atento àquele quadro, estava o Chico Caixa vestido como sempre à cáboi: chapéu de abas reviradas, calças afuniladas e botas mexicanas de tacão alto favorecendo-o em altura. Era também anti-simpatia, anti-clerical, anti-religioso, enfim, era um anti a tempo inteiro. Deu-se até o caso que num Domingo de Desobriga, quando alguns bons católicos que estavam, depois de terem cumprido o seu dever, a beberricar na taberna do Ti Manel da Ribeira estar ele também presente. Não é que o safado se vira para o Amândio Bexiga, no momento preciso em que ele emborcou de um trago um cálice de bagaço que sem rebuço, atira-lhe esta anormalidade: - Tão, já estás a afogá-LO?
         Os presentes, somente sorriram, não, que eles eram tementes e acharam melhor terem em conta o velho axioma: “Muitas graças a Deus e poucas graças com Deus”.
         Pois o nosso figurante, no alto dos seus tacões, movimentando um palito de fósforo que prendera na boca e com os olhos fisgados no caixão, gracejou: - Fico sem saber se a velha se abana por rir ou se ri por ser abanada. Os que estavam à sua beira e que eram da sua laia, deliraram, ficando toda aquela ala à beira caminho parada, bem-disposta e chalaceira.
         Já a carreta tinha ultrapassado o largo portão de ferro do jardim das cruzes e ainda se ouvia o gargalhar daquelas almas danadas sem temor a nada e a ninguém.
         - São uns ímpios, uns excomungados refilava a Ti Panchorra, virando a cabeça para donde vinha o som daquele despropósito.
         Quem esperava encostado à sachola, era o Ti Manel Pilatos, elevado à categoria de coveiro interino, já que o efectivo, o Ti Chanfana andava às voltas com um cobrão que o trazia derreado.
         Quando abeiraram o caixão, o Ti Pilatos descobriu-se metendo a boina no bolso traseiro das calças coçadas. O padre Manuel, fez a última oração e, de seguida, então sim, a menina Efigénia recebeu a última água.
         Fechado o sobretudo de pinho, foi este acomodado no fundo da cova com a ajuda de alguns populares.
         O Ti Pilatos debitou o seguinte comentário ao mesmo tempo que arremessava os olhos piscos e vermelhuscos que enxugava constantemente com o lenço tabaqueiro amarfanhado e enxovalhado, para o fundo da cova: - Para quem não é da arte, até ficou um trabalho asseado. O talhe como convém, foi mesmo à justinha. Desejo que a menina F’génia, conserve no Céu o mesmo sorriso com que se foi da terra. Isto, dito ao jeito do Ti Pilatos, fez com que os mais próximos, o padre Manuel incluído, retivessem a custo o sorriso.
         Só quando se ouviu o som cavo da terra a bater no tampo da urna, é que o povo debandou.
         Já o coveiro interino dava os últimos aconchegos à terra, quando o sino se calou.
         - C’um raio, até me pareceu que a porra do sino em vez de dobrar, tocava à Aleluia. Hum! Se calhar fui eu que não me atentei bem.
         Ia já de abalada, levando nos lábios um Pai Nosso, ao ombro a sachola e, com o lenço tabaqueiro limpando os olhos, ainda se voltou, a fim de ver como tinha ficado catita a última morada da menina Efigénia.

Conde da Gardunha

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A MORTE FICOU-LHE A MATAR (INTRODUÇÃO)

 A MORTE FICOU-LHE A MATAR (INTRODUÇÃO)                                                                        
       Há já alguns anos escrevi uma novela e, resolvi agora, transcrever o último capítulo já que contar toda a história poderia eventualmente tornar-se enfadonho. Tirando a personagem principal que é ficcionada e a localidade onde se passa a história ser mais ou menos localizada, todos os outros intervenientes existiram e faço questão de os mencionar pelas alcunhas que tinham. Também levei em conta a pronúncia do lugar e, por conseguinte, não considerem erro a ortografia
        Para entronizar os eventuais leitores nesta história resumi-la-ei em breves linhas uma vez que só será publicado o derradeiro capítulo.
        É a história da vida da menina Efigénia que foi menina até à sua morte em virtude de nunca ter casado. Não por falta de aptidão para o casamento mas, por falta de pretendentes. A menina Efigénia, beata militante mas, muito querida pelas gentes do lugar pelo seu espírito esmoler, nasceu, coitada dela, desprovida sequer de uma centelha de beleza. O que a mais desfeava eram dois  dentes da fachada quais duas sentinelas avançadas que nunca se albergavam na respectiva guarita. Era pessoa de muitos teres e haveres e que tinha por morte dos pais, herdado a mais rica casa do lugarejo
        Todos os Sábados na sua casa apalaçada havia serões onde as artes predominavam que ia do teatro à música passando inclusivamente pela dança. O promotor dos serões era o Ti Zé Loureiro que uma corda a menos na sua rabeca não lhe trazia engulhos
        Ora, foi num destes serões que a menina Efigénia - menina com quase oitenta anos – se marchou desta vida contente vítima de uma apoplexia motivada por um riso constante e convulsivo por uma piada grosseira dita pelo Ti “Questiano” já com um grão nas duas asas
        Verificado o óbito pelo físico, este por mais esforços que fizesse, não conseguiu que os músculos da rosto da defunta tomassem o seu estado natural. Foi para a cova com um ar risonho e feliz
        É pois a partir deste ponto que se inicia o último capítulo da novela.

Conde da Gardunha