REBIMBA O MALHO

REBIMBA O MALHO

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

APAIXONADO POR UM OLHAR

APAIXONADO POR UM OLHAR
       
Todos os Sábados e durante anos fazia um percurso que me dava imenso prazer.
Depois de tomar o pequeno-almoço na Brasileira no Chiado, fazia uma ronda pelas livrarias. Visitava primeiro a Sá da Costa onde me extasiava com a profusão de livros empilhados em enormes mesas bem como nas vastas prateleiras. Depois de me inteirar das novidades, seguia para a Bertrand, Aqui, detinha-me mais um pouco por via de um pequeno recanto onde estão uma mesa e duas cadeiras envolvidas por prateleiras contendo somente livros escritos por um senhor pelo qual tenho uma particular simpatia. Trata-se do Aquilino Ribeiro o homem da Grande Casa de Romarigães, Volfrâmio, Maria Benigna, Terras do Demo e de tantas outras obras que deliciam os amantes da boa leitura. Era neste recanto, que o escritor se sentava para ler ou simplesmente conversar com algum amigo que aparecesse.
Quase sempre roçava com os dedos as lombadas daquelas fiadas de livros como sinal de respeito e admiração.
Retomava a minha peregrinação descendo a Rua Garrett virando depois para a Rua do Carmo. Entrava na Portugal e, finalmente na Lello, onde permanecia mais tempo por virtude da amizade que me unia ao encarregado da livraria.
Porém, antes de transpor a porta, tinha como quase a obrigação de parar defronte a uma velhinha que encostada à parede e sentada no passeio estendia a sua mão trémula a quem passava. Por abrigo, tinha um xale preto pela cabeça que usava tanto no Verão como no Inverno.
Mas, é nesta estação do ano que os deserdados da sorte mais sofrem. Aquela velhinha apanhava a chuva por vezes gélida impelida pelo vento agreste que fazia tremer o mais agasalhado e, aquele ser frágil, no ocaso da vida, tendo só a cobri-la um frágil abafo que tantas vezes o vi ensopado. Tanto sacrifício, tão mal tratada, para no fim do dia, levar para casa umas escassas moedas.
Condoía-me aquele ser em particular e, todos os Sábados, dava-lhe com o maior prazer prazer uma nota previamente dobrada em quatro que lhe metia na mão esquálida. Nunca lhe ouvi uma palavra de agradecimento nem disso estava à espera. Agradecia-me de outra forma: levantando para mim os seus olhos lindos cor do céu e olhavam-me tão meigos e tão ternos que o agradecido era eu. Retribuía-me em dobro.
Gostava muito da minha velhinha de olhar doce que durante anos me habituara a receber dela a esmola daquele olhar.
Num Sábado de Verão, não a encontrei no seu lugar habitual. Estranhei muito a sua ausência sem que no entanto tivesse pensado o pior. Na vez seguinte, a pessoa do olhar meigo continuava ausente. Entrei na livraria e mal tinha pegado num livro, oiço nas minhas costas alguém chamando: - senhor! Quando me voltei vi um homem magro de cor macilenta mostrando querer falar comigo. A um empregado zeloso que vinha já pronto a evitar que eu fosse incomodado, fiz-lhe sinal para que não se intrometesse. Virei-me para o homem e perguntei o que desejava. Este ser visivelmente abatido com aspecto de doente, começou por falar de cabeça baixa e um pouco titubeante. - O senhor não me conhece, mas eu habituei-me a vê-lo todos os sábados a dar esmola à minha mãe. Também eu sou um pobre e pedia no passeio oposto. Prevendo o que tinha acontecido, mesmo assim, perguntei por ela. A resposta veio numa só palavra: morreu! Fiquei momentâneamente em silêncio. O homem prosseguiu: - Com a esmola que o senhor dava, servia para pagarmos a renda da nosso pobre casa e para mais alguma coisa. A minha mãe era muda mas soube dizer-me que era o senhor o seu bem-feitor. Um nó na garganta impedia que eu mantivesse o diálogo. A minha velhinha de olhar lindo era muda. Nunca o suspeitara.
Ainda mal recomposto, perguntei se não podia trabalhar. Baixou os olhos e confessou: - trabalhei na construção civil até que fui apanhado pela tuberculose. Estive internado num sanatório durante muito tempo. Quando saí, fui ao meu antigo trabalho mas não me aceitaram. Percorri tudo pedindo por favor que me dessem algo para fazer a fim de fazer face ao meu sustento e ao sustento da minha mãe mas, tudo foi em vão. A única coisa que me restava era pedir esmola e é o que faço.
Com o coração oprimido e cheio de raiva a esta sociedade ignóbil onde estamos inseridos, voltei-me ligeiramente de lado, dobrei a nota como fazia sempre com a mãe e ofereci-lha dizendo: - obrigado por me contar a vossa história. É uma história que me comoveu e mais, por nunca ter abandonado a sua mãe, pessoa que me prendeu desde o primeiro dia que a vi. Não sabia que era muda mas essa falta, era suprimida pelo seu lindo olhar que me fascinava. Em memória dela pode o meu amigo contar igualmente com o mesmo contributo para que de algum modo possa mitigar um pouco as suas carências.
Despediu-se de mim com os olhos marejados e um pouco à pressa como que envergonhado.
Dei graças por poder continuar a ajudar um ser que fora dado ao mundo por alguém que jamais esquecerei.
Já de regresso, sobraçando uma data de livros, ocorreu-me este pensamento: quem sabe se Deus não se serviu de mim, para minorar um pouco a pobreza destas suas duas criaturas. 

Conde da Gardunha