CARTA ESCRITA NO ANO DE 1995 A UM AMIGO DE INFÂNCIA AUSENTE DO PAÍS.
(É A CARTA MAIS LONGA QUE ESCREVI E POSSIVELMENTE A QUE ESTE AMIGO RECEBEU).
Meu querido A...
Depois das férias que as gozei no mês de
Agosto, resolvi dar-te conta como ocorreu a visita que fiz à Panasqueira terra
onde arribei com dois meses de vida. Foi mais do que uma visita, foi antes, uma
romagem de saudade.
Espero
que tenhas a paciência necessária para levares avante esta empreitada pois
promete ser longa. Pelo menos encontres nela, um pouco do prazer do muito que
tive ao escreve-la. Contudo, se achares que é pieguice ou despropositada,
perdoa mas, a razão, talvez seja devida ao facto, de muito ter amado aquelas
paragens bem como as gentes que nelas habitaram. É o passado que está arreigado
e, que de certo modo, ajuda a viver o presente.
O
dia 11 de Agosto deste ano do Senhor de 1995 amanhecera lindo e quente como,
aliás, é habitual nesta época de estio. Foi neste dia magnífico que da minha
terra ─Louriçal do Campo─
saíram dois automóveis com rumo à Panasqueira levando comigo amigos que
convidei a visitarem esta terra para mim muito querida.
A
primeira paragem foi em Silvares, recentemente promovida à categoria de Vila. A
hora do almoço chegara e, para o efeito, indagámos por um restaurante. Foi-nos
indicado alguns e optámos pelo que nos pareceu mais aprazível pois tinha um
terraço com grande latada. Escolha errada, confecção deficiente e, até a qualidade
bastante duvidosa.
A
digestão foi-se fazendo à medida que íamos somando quilómetros. Um pouco antes
do Rio (Cabeço do Pião), tive que fazer uma curta pausa, para ver uma vez mais aquela
paisagem soberba exposta aos olhares de todos.
Paisagem
de uma beleza sem par, os montes e vales sucedem-se e, entre estes, lá bem no
fundo, serpenteia molemente a ribeira do Zêzere; é um encanto, fonte
inspiradora para o mais exigente pintor. Enchemos os olhos e alentámos a alma.
Retomada
a marcha, ia pelo caminho observando e tudo me era familiar. Desde tenra idade
que me habituei ver aquelas paisagens e, se quando por ali residia, não dava a
merecida importância, agora que estou fisicamente ausente, a importância é
redobrada e, por tudo sinto um carinho especial até enternecedor.
São
aqueles aterros que jazem sem que por eles jamais rolem pedras quais lágrimas
rolando pela face enrugada de um ancião quiçá com saudades da pedra mãe de onde
foram separadas à força bruta dos explosivos.
São
os altos pilares do caminho aéreo que não são mais do que gigantes apontando os
céus parecendo gritar a sua revolta pela inutilidade. Jazem ao sabor do tempo
inexorável que aos poucos os vai corroendo.
Entrei
na Barroca Grande. À direita olhei o edifício dos correios. Estava encerrado.
Recordei o meu amigo Zé Neves, antes um seminarista, pessoa simples que com o
tempo e talvez pelo encargo que tinha ─
chefe dos correios─,
tomou conta dele a vaidade. O ser humano tem destas coisas.
Por
associação de recordações pois elas cruzam-se, entrelaçam-se e até
paralelamente caminham, lembrei-me do pai deste amigo o ti Francisco Carvalhas,
senhor de uma hortita que ficava paredes-meias com o recreio da escola das
raparigas. Como era muito cioso das suas culturas, ficávamos muito apreensivos
quando entravamos furtivamente pela necessidade de resgatarmos a bola que um
pontapé ou num ressalto a projectava para o meio da hortaliça. Ai daquele que
fosse apanhado a devassar a propriedade e, a coisa complicava-se, se desse
conta que por um passo mal calculado era pisada alguma novidade por ele
semeada. O homem, ficava furibundo. Com certeza que também assististe em algum
momento a este drama. Porém, nós que estávamos no pináculo da juventude e
irreverência embora um pouco contida pela brida da altura, pouco ou muito pouco
nos ralávamos.
Continuemos:
passei pelo edifício dos escritórios centrais e, tal como os correios, também
tinha as portas fechadas. Desolação!
O
casario está na mesma; todo perfilado ocupando aquela encosta e bem enquadrado
em todo aquele espaço envolvente.
Lá
está aquela curva por onde os trabalhadores atalhavam encurtando caminho
através da serra com destino à Panasqueira e outros iam mais além, para São
Jorge da Beira (Cebola). Era um fado de todos os dias. Tempos difíceis aqueles
principalmente quando o Inverno deitava de fora suas garras bem afiadas porque
ali, naquelas terras do fim do mundo, a invernia era inclemente, muito rigoroso
e longo. Era penoso para os que eram obrigados a meterem-se ao caminho chegando
aos seus locais de trabalho sabe Deus em que situação. Os salários eram parcos
e a perda de um ou dois dias, já faziam falta para o governo da casa,
principalmente para aqueles com família constituída. Havia de facto muitas
famílias a viverem muito mal, com sérias dificuldades até para o elementar.
Oxalá que todos eles, os que ainda estiverem entre nós, tenham hoje fartura e
que jamais nenhum mineiro ou operário passem por aquelas privações que todo o
ser humano em circunstância alguma deveria ter conhecido.
Depois
da Lomba da Cevada, vem logo a seguir os Cambões. Confesso que fiquei
agradavelmente surpreendido. Vi casas mais ou menos recentes tanto da parte de
cima como da parte de baixo da estrada. Fiquei contente, o lugar progredira.
Contudo, algumas já não são do meu tempo, pouco me dizem ou nada e, por isso,
prefira o antigo casario, aquele que me conhecera e eu a ele. A preferência
primeira vai para a capelinha lá no fundo do povoado, singela e, primorosamente
caiada de branco. Este carinho advém possivelmente, porque foi o primeiro sítio
que conheci dos Cambões. Sabes por quê? Era perto dela que no mês de Outubro de
todos anos ali fazíamos o magusto sob a vigilância dos nossos professores e do
padre Leal. Era no terreiro envolvente da capelinha que dávamos asas à nossa
alegria e às nossas brincadeiras de meninos. Assim, o eu associar a capelinha
às castanhas o que na verdade não posso dizer que seja o religiosamente
correcto. Posteriormente liguei-me por outro motivo. Era ao seu redor que
anualmente se fazia uma festa em Sua honra. Todavia, penso que a Sua graça é
Senhora da Guia. Será?
Era
uma festa simpática como todas as festas das aldeias. E nós, o nosso grupo, por
lá deambulávamos não só para vermos as cachopas e diga-se em abono da verdade,
também para sermos vistos. Abandonávamos o terreiro, rente à hora do jantar,
levando cada um de nós, os bolsos cheio de ilusões desfeitas. Retínhamos as
imagens dos corpos das moçoilas que nos alimentavam os sonhos durante dias.
Eis-nos
chegados ao Rato que já lá não está ─ parece má sina ─
. Vi escombros e vi tristeza. Foi uma casa com tradição que desapareceu. Ficou
mais pobre aquele sítio. Esta casa também está ligada à minha meninice, pois lá
emborquei muitos pirolitos à beira do meu pai. Como tudo já vai longínquo.
Chego
à Madurrada. Lá em baixo, numa casa meio escondida por árvores e vegetação,
vivia outrora um senhor suserano. Senhor inacessível que mandava em todas
aquelas terras. Até as casas dos seus vassalos lhe pertenciam. Poderia assim
começar uma historieta triste para ser contada aos nossos filhos ou netos num
serão. Infelizmente não se trata de ficção; era a crua realidade e ninguém,
penso eu, alguma vez pensou quão frágil era a sua segurança e dos seus. A
qualquer momento e, até sem motivo que justificasse, tão-somente por mero
capricho de um senhor importante podia um vassalo ficar não só sem trabalho
como também sem tecto para se poder abrigar. Não deve haver tristeza maior do
que um ente não ter abrigo para si e para a sua família. Não quero dizer que
isso tenha acontecido. Contudo, se aconteceu ignoro. Mas o facto é que como as
coisas se processavam na altura, em que não existia uma entidade que zelasse
pelos que ali labutavam, podiam perfeitamente e abusivamente atirar com
qualquer um para o desespero. Felizmente que hoje os tempos são outros, embora
se continue a verificar muitas injustiças, muitos atropelos com a agravante de
o homem ter refinado na sua crueza.
Postas
que estão estas considerações, retomo as impressões que colhi nesta romagem: Em
frente da entrada principal que dá acesso à entrada principal da casa senhorial
e, mesmo na curva, ainda de pé parecendo-me até em bom estado, está a casa da
governanta do tal senhor que acudia por John Smith. Se a memória não me
atraiçoa ela chamava-se Benvinda. Mesmo tratando-se de uma serviçal, lembro-me
que as pessoas lhe atribuíam uma certa deferência. O mesmo acontecia com o
motorista o Sr. Tavares que fora proprietário dos carros de aluguer que estavam
ao serviço da empresa. O Sr. Tavares era considerado pessoa importante e ele
cheio de prosápia. Era um arrogante ao ponto de o temerem. Como eram as coisas
naquele tempo. Agora meu amigo, ali naquele local, a saudade apertou. A
lembrança dos nossos passeios que quase diariamente fazíamos depois do jantar
ou mesmo à noitinha. Olhei aqueles muros que circundam o feudo e lá está aquele
onde o nosso grupo se sentava em hilariantes conversas. Diga-se a verdade e,
sem vaidade, não havia grupo como o nosso, mesmo cada um com a sua
personalidade.
Cheguei
enfim ao largo do clube. Quis mostrar aos meus convidados a boca da mina da
galeria 5 mas um enorme taipal escondia-a totalmente e assim, estavam também as
outras. Grande decepão. Esconderam-nas como quando alguém tem vergonha de uma
falta menos digna e procura esconderijo. Será que um portão de ferro e um forte
cadeado já não é o suficiente para travar os que pretendam prevaricar? Deve ser
o sinal dos tempos.
Do
meio do largo estendi o olhar até à casa que durante muitos anos me abrigou.
Não está como a deixei. A beleza que tinha já a não tem mais. Amputaram-na
naquilo que mais graça lhe dava. O varandim da entrada no qual tantas vezes me
debrucei ou resguardei de um aguaceiro breve. Que catita ele era. E que dizer
das águas-furtadas? Arrancaram tudo, taparam e alisaram o telhado com umas
quantas telhas. Era ali o meu quarto e a janela estava virada para o mundo. Era
através dela que todas as manhãs mirava e namorava a beleza daquelas serranias.
Mirava e namorava a Serra da Estrela a nossa maior e ficava jubiloso quando com
toda a sua pujança se me oferecia, bela com o seu manto de neve e o sol como
seu amante acariciava-a bafejando mornamente com o seu calor tímido. Era dessa
janela, que observava o bulício das gentes que no seu vai e vem davam vida
àquela terra, a vida que hoje infelizmente está moribunda ou num estado
vegetativo. Só falta dizer que quem hoje mora naquela casa é uma senhora Elvira
viúva do ti Ricardo da Silva pai de um nosso condiscípulo José Rodrigues da
Silva, julgo ser esse o seu nome completo.
A
porta do clube estava ainda encerrada. Até parece o fado desta terra, ter os
principais edifícios fechados. Dei a volta e entrei no ringue de patinagem.
Aqui, está tudo mais ou menos como antigamente salvo, a falta da porta que do
clube lhe dava acesso. No seu lugar há agora umas fiadas de tijolos colocados
muito toscamente, nem rebocaram e muito menos pintaram. Serve ao menos para
indicar aos vindouros que outrora por ali também se passava.
Olhei
atentamente aquele espaço desportivo e por momentos visualizei com bastante
nitidez o que se passou ali há muitos anos atrás: Foi numa noite quente de
verão houve festa abrilhantada pela Filarmónica de São Jorge da Beira. Estava
arrumada no lado direito do ringue, e enchia-nos com as modinhas em voga
naquele tempo. As mesas previamente marcadas, estavam dispersas pelo recinto.
Lembras-te meu amigo? O nosso grupo, ao qual nessa noite se juntaram outros
amigos, lá tinha uma mesa reservada. Houve petiscos que eram empurrados por um
capitoso vinho cuja marca vê lá tu, nunca esqueci. O nome que recebera foi “Surpresa”
e que surpresa…
Esta
noite, a memória não apagou. A magia estava presente: as estrelas pendentes
brilhavam no firmamento; os pares redopiavam ao som da música; no ar
cruzavam-se os aromas desprendidos pelos corpos ondulantes das raparigas e dos
perfumes possivelmente contrabandeados como: “Flores del Campo” ou “Diamante
Negro” e, talvez também, cheirinhos de marca omissa comprados a peso no armazém
de víveres. Toda esta mistura de olores e com a cumplicidade do tal néctar
“Surpresa” originou efectivamente uma noite inolvidável. Para culminar este
romantismo, até arranjei uma namorada, namorada de uma só noite. Fui o senhor
daquele ser ─ no bom sentido, claro ─
daquelas horas. Quem pretendesse bailar com a minha recém-conversada, tinha que
primeiro ter o meu consentimento, condição por ela imposta. Era assim que
dantes funcionava. Como disse foi um namoro de umas horas porque no dia
seguinte, Domingo, com a conivência do nosso amigo Zé Marques, dei o dito por
não dito e assim tudo ficou sem efeito. Por algum tempo, arrependido, andei de
mal comigo mesmo, o procedimento não tinha sido nada correcto. O nome dela?
Terás que avivar a memória se não te lembrares.
Bem,
fomos andando que o calor apertava e ainda havia mais para ver. Estava mais
sedento por aqueles lugares que propriamente por água.
Desci
à praça e o velho coreto, um ícone, lá estava ainda de pé qual sentinela
teimosa vigiando aquele espaço quase deserto. Ele assistiu, como única
testemunha, toda aquela derrocada à sua volta: o talho, a padaria, o armazém de
víveres, as garagens e sei lá que mais. Senti um imenso vazio e uma atroz
nostalgia. Porém, ele, o velho coreto, tendo a seus pés o bairro de baixo
também num estado de adiantada degradação, continua altaneiro a espreitar à
direita, lá longe, a nossa Serra Maior e, desviando o olhar e seguindo a linha
do horizonte já na Serra do Açor namora o simpático Picoto. Eu também gostei de
namorar aqueles dois montes que configuram dois seios túrgidos de moça virgem.
Pena foi, que nos tempos áureos, não tivessem construído numa das suas elevações,
um grandioso monumento em homenagem a todos os mineiros. E, se fosse do agrado
da maioria, no cume do pedestal fosse colocada a imagem de santa Bárbara, a
padroeira, na condição de aparecer à comunidade mineira com os braços bem
abertos abraçando e abençoando todas aquelas terras e toda aquela gente laboriosa.
Quando se abraça, abençoa-se.
CONTINUA
Conde Da Gardunha