AS ESCOLAS, OS PROFESSORES E O ENSINO
No meu tempo, a Panasqueira tinha duas escolas geminadas situadas a poente do casario.
Eram de boa construção e estavam apetrechadas com todo o material inerente ao
ensino e, até tinha aquecimento através de estufas alimentadas a lenha. Em
termos de comparação, seriam as salamandras de hoje, mas sem adornos.
O acesso
fazia-se subindo primeiro quatro ou cinco degraus de pedra, um patamar, e deste
partiam duas escadarias também de pedra: uma para a direita e ia dar à escola
das raparigas a outra dava para a dos rapazes. Vencida esta subida, estava
ligeiramente à direita a porta principal de acesso, protegida por um alpendre
com varandim de madeira. Ao transpô-la, entrávamos numa antecâmara que servia
para guardar a lenha previamente acamada e ao mesmo tempo de pátio de recreio
nos dias chuvosos.
Dentro
da sala principal, ao fundo do lado esquerdo, estava o quadro preto assente num
tripé de madeira. Ao centro e em cima de um estrado, a mesa de trabalho do
professor. Por detrás, dependurados na parede, um crucifixo e a ladeá-lo, as
figuras supremas do Estado Novo, bem como, mapas de Portugal e outros. À
direita de quem entrava, ao fundo, ficava uma divisão, habitualmente fechada e
servia para guardar todo o material didáctico e também um presépio com
bastantes figuras que nas vésperas das férias do Natal era armado pelos alunos
sob a orientação do professor.
Contíguo à
escola, havia um recinto murado com uma área suficiente para os nossos recreios.
A sala
comportava as quatro classes do Ensino Primário, o que resultava num elevado
número de alunos, para cada professor.
Os livros,
tinta para escrever e todo o material necessário para o bom funcionamento do
ensino, eram fornecidos gratuitamente pela Companhia, proprietária de todo
aquele couto mineiro que compreendia três povoações: Panasqueira, Barroca
Grande e Rio.
Para conter
a possível rebeldia própria daquelas idades, e também devido – como já disse –
ao excesso de educandos, estava implementada uma disciplina quase férrea que
podíamos traduzi-la por um misto respeito-medo. A pedagogia imperante era regida
pela cana-da-índia e pela tão temida régua. O professor tendo à mão estes dois
objectos disciplinadores, conseguia uma sala repleta de alunos num silêncio
quase absoluto. Porém, se alguém tinha a veleidade de algum desmando, não
escapava sem levar uma ou duas varadas que por vezes escorregavam da cabeça
para as orelhas quando eram mal dirigidas. Este era considerado um castigo
menor porque o professor que me levou ao exame da quarta classe, esse, arremessava
a régua e… lá ia ela pelos ares volteando até cair certeira na cabeça do
desatento. Várias foram as vezes que houve a necessidade das vítimas terem de
ir ao Posto de Socorros, a fim de receberem assistência.
Queixas ou
lamúrias sobre a conduta do professor, não me lembra que as tivesse havido
fosse de quem fosse, até porque eram os pais que conferiam ao mestre, na maior
parte das vezes, o poder de castigar os seus filhos. Em alguns casos fui
testemunha, de o pai quando acompanhava o filho pela primeira vez, recomendar:
- sempre que ele precisar arreie-lhe. – Foi o meu caso e do meu irmão. - A
partir daí, ficávamos sujeitos às arbitrariedades do zeloso protector.
Não
adiantava ao castigado ir para casa com queixinhas porque sujeitava-se a levar a
segunda dose, ou quando muito, receber como resposta: - Foi porque as estavas a
pedir. Como não havia outra alternativa, o mais ajuizado, era apanhar e calar.
O professor
que me levou até à terceira classe foi porventura o que mais violentamente
castigava. Para dar uma reguada, despia o casaco a fim de lhe imprimir maior
vigor. Foi por volta dos anos de 1948 ou 1949 – andava eu na primeira ou
segunda classe – que somente dois alunos foram propostos para o exame da quarta
classe. Se a memória não me falha e aqui fica desde já a ressalva, os propostos
foram o João Monteiro Marques e o Luciano Covita Antunes.
As aulas
terminavam às 15,30 horas. Porém, o João e o Luciano ficavam para além dessa
hora, começando para eles um verdadeiro martírio porque a partir dessa hora, tinham
a bem dizer, um professor particular, atento e sem contemplações. A pressão era
tanta, que o Luciano a fingir ou não… desmaiava. O que mais desejavam era sair
dali quanto antes, para não estarem sob admoestações alterosas e, o mais grave
e doloroso, castigados com reguadas. Passado todo este tempo, sei agora a
verdadeira dimensão do problema. A culpa não residia com certeza numa classe
inteira e desta, só dois propostos para exame, sabendo-se ainda assim, com que
dificuldade.
No que me
diz respeito, confesso que ia sempre apreensivo para a escola, tomado pelo
medo. Provavelmente era o que acontecia com todos os meus colegas porque nunca
vi nenhum entrar na sala risonho e feliz a não ser nos Sábados. Nestes dias,
cantávamos além do Hino Nacional, cantigas para as nossas idades como o “Foi na
loja do mestre André” e outras. Tínhamos uma prédica sobre Moral, bem como,
jogos e ginástica. Dado que a Companhia era inglesa até o hino “God Save The Queen” tivemos
que aprender. Eram manhãs passadas descontraidamente, propicias às
brincadeiras, para as quais estávamos mais vocacionados.
Como já
referi, o ensino era severo ultrapassando a barreira da integridade física.
Apesar de
tudo o aluno ao completar o Ensino Primário ficava com uma cultura geral, muito
superior aos alunos de hoje com o 4º. ano
Na
disciplina de português, ficávamos a saber ler correctamente com a respectiva
pontuação e interpretar o que tínhamos lido, com o professor a questionar-nos.
Fazíamos ditados, para corrigir possíveis erros ortográficos. Sabíamos de
antemão que por cada erro dado, era passível de uma reguada. Quando era chegada
a altura de o professor entregar os ditados já corrigidos, todos bafejavam as
mãos em concha, para as aquecer porque assim, o castigo doía menos. Quando os
erros eram muitos, as mãos ofereciam-se alternadamente, para a dor ser repartida.
Tive um condiscípulo que era avesso à arte de bem escrever, pois num ditado
dava 30 e 40 erros. O professor neste caso excepcional, nunca cumpriu com o
estabelecido e ainda bem. Anos mais tarde, já adulto vim a saber que este amigo
tinha tirado a licenciatura de engenharia. Provado ficou que o caminho futuro,
passaria pelas ciências e não pelas letras.
Tínhamos que
saber classificar cada letra ou palavra, mas para isso, já tínhamos aprendido
os artigos, preposições, contraposições, advérbios, conjunções, todos os verbos
nos seus tempos e modos que eram papagueados sem hesitações. Dividir orações,
uma matéria que requeria muita prática, classificá-la, saber o sujeito, o
predicado, complemento directo ou indirecto e além de tudo o mais, saber fazer
uma redacção, era fundamental.
Adquiri há
anos um exemplar do livro de leitura por onde estudei na quarta classe. Escusado
será dizer que o conservo com muito apreço. Ainda hoje acho que este “LEITURAS”
–
assim se chama o livro – muito bem concebido porque além do aspecto gráfico ser
óptimo, tem excertos das obras dos nossos maiores escritores românticos.
Induzia-nos ─ pelo menos
a mim ─ a procurar esses livros para sabermos
como terminavam as histórias. A propósito, recordo de termos lido nessa altura,
um trecho que me ficou na memória durante muito tempo, o que não aconteceu com
o nome do seu autor. Num belo dia, estando a ler um romance, fiquei alegremente
surpreendido ao encontrar o que há tanto tempo procurava. Finalmente, pude
assim saber na íntegra a história daquele livro. Tratava-se do livro “A MORGADINHA DOS CANAVIAIS” de Júlio
Dinis, o escritor português mais lido e representado, tanto no cinema, teatro e
mesmo em folhetim na televisão.
Das outras
disciplinas falarei o mais resumidamente possível como por exemplo a
Aritmética. Trabalhávamos com os números quebrados e decimais com as
respectivas reduções e operações. Os múltiplos e submúltiplos de todas as
medidas desde as de comprimento até às de volume, passando pelas de capacidade,
etc. bem como as suas equivalências: o
metro cúbico é igual ao quilolitro; o hectare é igual ao hectómetro quadrado.
Estas cantilenas foram tantas e tantas vezes repetidas que tenho a impressão
que ninguém esqueceu.
O grande
problema – ontem como hoje – era resolver com acerto os problemas mais difíceis
desafiando a nossa capacidade de raciocínio que a maioria não tinha. Requeria
por isso, um maior estudo e prática aturada. Era na verdade um quebra-cabeças
para todos.
Com a
Geometria, aprendíamos o nome dos ângulos, dos triângulos e calcular a
respectiva área, assim como os trapézios, traçar uma bissectriz, uma tangente
ou uma secante Dava-nos a conhecer as várias figuras geométricas como a esfera,
o cone, a pirâmide, o polígono, etc.
A Geografia
ministrava-nos o ensinamento sobre o que era uma Baía, um Estreito, um Cabo,
uma Península, uma Ilha e o que mais havia. Aprendíamos o nome dos onze
principais rios, aonde nasciam, por onde passavam e aonde iam desaguar, bem
como, o nome dos afluentes de ambas as margens. Ficávamos também a saber o nome
de todas as serras e as linhas do caminho-de-ferro que eram apontadas no mapa
pelo dedo do aluno, percorrendo a marcha de cada uma.
Por último,
História, a matéria que mais gostava a par com o Português. Para quem a lesse e
tivesse alguma capacidade de memorização, tornava-se fácil. Estudávamos todos
os reinados desde D. Afonso Henriques até D. Manuel II. O respectivo compêndio
tinha uma lição por cada reinado referindo os feitos mais notáveis. Na página
seguinte, trazia um questionário com as respectivas respostas que não era mais,
do que um resumo do que tínhamos lido e o professor explicado. Quem tivesse
decorado as respostas, ia para a examina já mais afoito. Mas, não há rosas sem
espinhos e nem bela sem senão. A História era uma disciplina propícia às
odientas sabatinas que consistiam em pôr os alunos em confronto sobre o seu
saber. Éramos colocados em semicírculo, com o professor à nossa frente a
questionar-nos. Começava pelo da ponta e se este errasse e o que estava a
seguir acertasse, este aceitava a régua entregue pelo professor e dava naquele.
Aconteceu muitas vezes que o que castigava, ou porque era por ser colega ou por
medo duma represália quando saísse, a reguada era frouxa com pouco vigor o que
não convencia o professor. Este sorria e dizia-lhe: – como não sabes, vou
ensinar-te. Ora estende lá o braço. Uma reguada é dada da seguinte maneira… –
truz, lá caía ela sem dó nem piedade.
MORAL:
tanto se apanhava sabendo, como ignorando.
Não
fiquei com saudades daquele tempo.
Para terminar esta memória ao calor da lareira, recordo alguns.companheiros que
fizeram comigo o exame da quarta classe, na cidade da Covilhã – o concelho –
num longínquo mês de Verão. Fica aqui desde já, expressa a minha consternação
por só me lembrar destes:
Desde essa altura que nunca mais tive notícias destes
meus condiscípulos com grande pena minha.
CONDE DA GARDUNHA