REBIMBA O MALHO

REBIMBA O MALHO

domingo, 4 de novembro de 2012

UMA CARTA

UMA CARTA


CARTA ESCRITA NO ANO DE 1995 A UM AMIGO DE INFÂNCIA AUSENTE DO PAÍS.
(É A CARTA MAIS LONGA QUE ESCREVI E POSSIVELMENTE A QUE ESTE AMIGO RECEBEU).


           Meu querido A...                                                                                                         


           Depois das férias que as gozei no mês de Agosto, resolvi dar-te conta como ocorreu a visita que fiz à Panasqueira terra onde arribei com dois meses de vida. Foi mais do que uma visita, foi antes, uma romagem de saudade.
Espero que tenhas a paciência necessária para levares avante esta empreitada pois promete ser longa. Pelo menos encontres nela, um pouco do prazer do muito que tive ao escreve-la. Contudo, se achares que é pieguice ou despropositada, perdoa mas, a razão, talvez seja devida ao facto, de muito ter amado aquelas paragens bem como as gentes que nelas habitaram. É o passado que está arreigado e, que de certo modo, ajuda a viver o presente.
O dia 11 de Agosto deste ano do Senhor de 1995 amanhecera lindo e quente como, aliás, é habitual nesta época de estio. Foi neste dia magnífico que da minha terra Louriçal do Campo saíram dois automóveis com rumo à Panasqueira levando comigo amigos que convidei a visitarem esta terra para mim muito querida.
A primeira paragem foi em Silvares, recentemente promovida à categoria de Vila. A hora do almoço chegara e, para o efeito, indagámos por um restaurante. Foi-nos indicado alguns e optámos pelo que nos pareceu mais aprazível pois tinha um terraço com grande latada. Escolha errada, confecção deficiente e, até a qualidade bastante duvidosa.
A digestão foi-se fazendo à medida que íamos somando quilómetros. Um pouco antes do Rio (Cabeço do Pião), tive que fazer uma curta pausa, para ver uma vez mais aquela paisagem soberba exposta aos olhares de todos.
Paisagem de uma beleza sem par, os montes e vales sucedem-se e, entre estes, lá bem no fundo, serpenteia molemente a ribeira do Zêzere; é um encanto, fonte inspiradora para o mais exigente pintor. Enchemos os olhos e alentámos a alma.
Retomada a marcha, ia pelo caminho observando e tudo me era familiar. Desde tenra idade que me habituei ver aquelas paisagens e, se quando por ali residia, não dava a merecida importância, agora que estou fisicamente ausente, a importância é redobrada e, por tudo sinto um carinho especial até enternecedor.
São aqueles aterros que jazem sem que por eles jamais rolem pedras quais lágrimas rolando pela face enrugada de um ancião quiçá com saudades da pedra mãe de onde foram separadas à força bruta dos explosivos.
São os altos pilares do caminho aéreo que não são mais do que gigantes apontando os céus parecendo gritar a sua revolta pela inutilidade. Jazem ao sabor do tempo inexorável que aos poucos os vai corroendo.
Entrei na Barroca Grande. À direita olhei o edifício dos correios. Estava encerrado. Recordei o meu amigo Zé Neves, antes um seminarista, pessoa simples que com o tempo e talvez pelo encargo que tinha chefe dos correios, tomou conta dele a vaidade. O ser humano tem destas coisas.
Por associação de recordações pois elas cruzam-se, entrelaçam-se e até paralelamente caminham, lembrei-me do pai deste amigo o ti Francisco Carvalhas, senhor de uma hortita que ficava paredes-meias com o recreio da escola das raparigas. Como era muito cioso das suas culturas, ficávamos muito apreensivos quando entravamos furtivamente pela necessidade de resgatarmos a bola que um pontapé ou num ressalto a projectava para o meio da hortaliça. Ai daquele que fosse apanhado a devassar a propriedade e, a coisa complicava-se, se desse conta que por um passo mal calculado era pisada alguma novidade por ele semeada. O homem, ficava furibundo. Com certeza que também assististe em algum momento a este drama. Porém, nós que estávamos no pináculo da juventude e irreverência embora um pouco contida pela brida da altura, pouco ou muito pouco nos ralávamos.
Continuemos: passei pelo edifício dos escritórios centrais e, tal como os correios, também tinha as portas fechadas. Desolação!
O casario está na mesma; todo perfilado ocupando aquela encosta e bem enquadrado em todo aquele espaço envolvente.
Lá está aquela curva por onde os trabalhadores atalhavam encurtando caminho através da serra com destino à Panasqueira e outros iam mais além, para São Jorge da Beira (Cebola). Era um fado de todos os dias. Tempos difíceis aqueles principalmente quando o Inverno deitava de fora suas garras bem afiadas porque ali, naquelas terras do fim do mundo, a invernia era inclemente, muito rigoroso e longo. Era penoso para os que eram obrigados a meterem-se ao caminho chegando aos seus locais de trabalho sabe Deus em que situação. Os salários eram parcos e a perda de um ou dois dias, já faziam falta para o governo da casa, principalmente para aqueles com família constituída. Havia de facto muitas famílias a viverem muito mal, com sérias dificuldades até para o elementar. Oxalá que todos eles, os que ainda estiverem entre nós, tenham hoje fartura e que jamais nenhum mineiro ou operário passem por aquelas privações que todo o ser humano em circunstância alguma deveria ter conhecido.

Depois da Lomba da Cevada, vem logo a seguir os Cambões. Confesso que fiquei agradavelmente surpreendido. Vi casas mais ou menos recentes tanto da parte de cima como da parte de baixo da estrada. Fiquei contente, o lugar progredira. Contudo, algumas já não são do meu tempo, pouco me dizem ou nada e, por isso, prefira o antigo casario, aquele que me conhecera e eu a ele. A preferência primeira vai para a capelinha lá no fundo do povoado, singela e, primorosamente caiada de branco. Este carinho advém possivelmente, porque foi o primeiro sítio que conheci dos Cambões. Sabes por quê? Era perto dela que no mês de Outubro de todos anos ali fazíamos o magusto sob a vigilância dos nossos professores e do padre Leal. Era no terreiro envolvente da capelinha que dávamos asas à nossa alegria e às nossas brincadeiras de meninos. Assim, o eu associar a capelinha às castanhas o que na verdade não posso dizer que seja o religiosamente correcto. Posteriormente liguei-me por outro motivo. Era ao seu redor que anualmente se fazia uma festa em Sua honra. Todavia, penso que a Sua graça é Senhora da Guia. Será?
Era uma festa simpática como todas as festas das aldeias. E nós, o nosso grupo, por lá deambulávamos não só para vermos as cachopas e diga-se em abono da verdade, também para sermos vistos. Abandonávamos o terreiro, rente à hora do jantar, levando cada um de nós, os bolsos cheio de ilusões desfeitas. Retínhamos as imagens dos corpos das moçoilas que nos alimentavam os sonhos durante dias.
Eis-nos chegados ao Rato que já lá não está parece má sina . Vi escombros e vi tristeza. Foi uma casa com tradição que desapareceu. Ficou mais pobre aquele sítio. Esta casa também está ligada à minha meninice, pois lá emborquei muitos pirolitos à beira do meu pai. Como tudo já vai longínquo.
Chego à Madurrada. Lá em baixo, numa casa meio escondida por árvores e vegetação, vivia outrora um senhor suserano. Senhor inacessível que mandava em todas aquelas terras. Até as casas dos seus vassalos lhe pertenciam. Poderia assim começar uma historieta triste para ser contada aos nossos filhos ou netos num serão. Infelizmente não se trata de ficção; era a crua realidade e ninguém, penso eu, alguma vez pensou quão frágil era a sua segurança e dos seus. A qualquer momento e, até sem motivo que justificasse, tão-somente por mero capricho de um senhor importante podia um vassalo ficar não só sem trabalho como também sem tecto para se poder abrigar. Não deve haver tristeza maior do que um ente não ter abrigo para si e para a sua família. Não quero dizer que isso tenha acontecido. Contudo, se aconteceu ignoro. Mas o facto é que como as coisas se processavam na altura, em que não existia uma entidade que zelasse pelos que ali labutavam, podiam perfeitamente e abusivamente atirar com qualquer um para o desespero. Felizmente que hoje os tempos são outros, embora se continue a verificar muitas injustiças, muitos atropelos com a agravante de o homem ter refinado na sua crueza.
Postas que estão estas considerações, retomo as impressões que colhi nesta romagem: Em frente da entrada principal que dá acesso à entrada principal da casa senhorial e, mesmo na curva, ainda de pé parecendo-me até em bom estado, está a casa da governanta do tal senhor que acudia por John Smith. Se a memória não me atraiçoa ela chamava-se Benvinda. Mesmo tratando-se de uma serviçal, lembro-me que as pessoas lhe atribuíam uma certa deferência. O mesmo acontecia com o motorista o Sr. Tavares que fora proprietário dos carros de aluguer que estavam ao serviço da empresa. O Sr. Tavares era considerado pessoa importante e ele cheio de prosápia. Era um arrogante ao ponto de o temerem. Como eram as coisas naquele tempo. Agora meu amigo, ali naquele local, a saudade apertou. A lembrança dos nossos passeios que quase diariamente fazíamos depois do jantar ou mesmo à noitinha. Olhei aqueles muros que circundam o feudo e lá está aquele onde o nosso grupo se sentava em hilariantes conversas. Diga-se a verdade e, sem vaidade, não havia grupo como o nosso, mesmo cada um com a sua personalidade.
Cheguei enfim ao largo do clube. Quis mostrar aos meus convidados a boca da mina da galeria 5 mas um enorme taipal escondia-a totalmente e assim, estavam também as outras. Grande decepão. Esconderam-nas como quando alguém tem vergonha de uma falta menos digna e procura esconderijo. Será que um portão de ferro e um forte cadeado já não é o suficiente para travar os que pretendam prevaricar? Deve ser o sinal dos tempos.
Do meio do largo estendi o olhar até à casa que durante muitos anos me abrigou. Não está como a deixei. A beleza que tinha já a não tem mais. Amputaram-na naquilo que mais graça lhe dava. O varandim da entrada no qual tantas vezes me debrucei ou resguardei de um aguaceiro breve. Que catita ele era. E que dizer das águas-furtadas? Arrancaram tudo, taparam e alisaram o telhado com umas quantas telhas. Era ali o meu quarto e a janela estava virada para o mundo. Era através dela que todas as manhãs mirava e namorava a beleza daquelas serranias. Mirava e namorava a Serra da Estrela a nossa maior e ficava jubiloso quando com toda a sua pujança se me oferecia, bela com o seu manto de neve e o sol como seu amante acariciava-a bafejando mornamente com o seu calor tímido. Era dessa janela, que observava o bulício das gentes que no seu vai e vem davam vida àquela terra, a vida que hoje infelizmente está moribunda ou num estado vegetativo. Só falta dizer que quem hoje mora naquela casa é uma senhora Elvira viúva do ti Ricardo da Silva pai de um nosso condiscípulo José Rodrigues da Silva, julgo ser esse o seu nome completo.
A porta do clube estava ainda encerrada. Até parece o fado desta terra, ter os principais edifícios fechados. Dei a volta e entrei no ringue de patinagem. Aqui, está tudo mais ou menos como antigamente salvo, a falta da porta que do clube lhe dava acesso. No seu lugar há agora umas fiadas de tijolos colocados muito toscamente, nem rebocaram e muito menos pintaram. Serve ao menos para indicar aos vindouros que outrora por ali também se passava.
Olhei atentamente aquele espaço desportivo e por momentos visualizei com bastante nitidez o que se passou ali há muitos anos atrás: Foi numa noite quente de verão houve festa abrilhantada pela Filarmónica de São Jorge da Beira. Estava arrumada no lado direito do ringue, e enchia-nos com as modinhas em voga naquele tempo. As mesas previamente marcadas, estavam dispersas pelo recinto. Lembras-te meu amigo? O nosso grupo, ao qual nessa noite se juntaram outros amigos, lá tinha uma mesa reservada. Houve petiscos que eram empurrados por um capitoso vinho cuja marca vê lá tu, nunca esqueci. O nome que recebera foi “Surpresa” e que surpresa…
Esta noite, a memória não apagou. A magia estava presente: as estrelas pendentes brilhavam no firmamento; os pares redopiavam ao som da música; no ar cruzavam-se os aromas desprendidos pelos corpos ondulantes das raparigas e dos perfumes possivelmente contrabandeados como: “Flores del Campo” ou “Diamante Negro” e, talvez também, cheirinhos de marca omissa comprados a peso no armazém de víveres. Toda esta mistura de olores e com a cumplicidade do tal néctar “Surpresa” originou efectivamente uma noite inolvidável. Para culminar este romantismo, até arranjei uma namorada, namorada de uma só noite. Fui o senhor daquele ser no bom sentido, claro daquelas horas. Quem pretendesse bailar com a minha recém-conversada, tinha que primeiro ter o meu consentimento, condição por ela imposta. Era assim que dantes funcionava. Como disse foi um namoro de umas horas porque no dia seguinte, Domingo, com a conivência do nosso amigo Zé Marques, dei o dito por não dito e assim tudo ficou sem efeito. Por algum tempo, arrependido, andei de mal comigo mesmo, o procedimento não tinha sido nada correcto. O nome dela? Terás que avivar a memória se não te lembrares.
Bem, fomos andando que o calor apertava e ainda havia mais para ver. Estava mais sedento por aqueles lugares que propriamente por água.
Desci à praça e o velho coreto, um ícone, lá estava ainda de pé qual sentinela teimosa vigiando aquele espaço quase deserto. Ele assistiu, como única testemunha, toda aquela derrocada à sua volta: o talho, a padaria, o armazém de víveres, as garagens e sei lá que mais. Senti um imenso vazio e uma atroz nostalgia. Porém, ele, o velho coreto, tendo a seus pés o bairro de baixo também num estado de adiantada degradação, continua altaneiro a espreitar à direita, lá longe, a nossa Serra Maior e, desviando o olhar e seguindo a linha do horizonte já na Serra do Açor namora o simpático Picoto. Eu também gostei de namorar aqueles dois montes que configuram dois seios túrgidos de moça virgem. Pena foi, que nos tempos áureos, não tivessem construído numa das suas elevações, um grandioso monumento em homenagem a todos os mineiros. E, se fosse do agrado da maioria, no cume do pedestal fosse colocada a imagem de santa Bárbara, a padroeira, na condição de aparecer à comunidade mineira com os braços bem abertos abraçando e abençoando todas aquelas terras e toda aquela gente laboriosa. Quando se abraça, abençoa-se.
                                                              CONTINUA
Conde Da Gardunha

7 comentários:

  1. Sabes uma coisa, Victor? Chorei ao ler esta carta, não me envergonho de dizê-lo.

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  2. Não foste o único meu querido Zé, também chorei quando a escrevi nesse ano já longinquo de 1995.
    Sabes a quem a escrevi? Ao Albino R. Barata.

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  3. Estas narrações dos tempos das nossas juventudes,seria bom que ficassem escritas em Livro para que os nossos netos tivessem oportunidade de conhecer.Parabéns Vitor quem sabe assim,não pode por a caneta de lado.

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  4. MUITO OBRIGADO MEU QUERIDO AMIGO JOAQUIM BARATA PELAS SUAS PALAVRAS. UM ABRAÇO AMIGO.

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  5. Porque não ousas escrever

    um livro, com o estilo habitual, (fazes-me lembrar o Eça) de toda a tua vivência enquanto residente nas Minas? Aquela terra merece ser contada

    por alguém que saiba, como tu sabes, descrever de uma forma clara e

    num estilo digno de um clássico, todas as histórias vividas num lugar

    serrano, sem paralelo, neste Portugal que já foi um País e que agora

    trabalha para pagar os actos criminosos dos políticos!

    Vou aguardar que acabes a narração da tua carta, com alguma espectativa,

    esperando que me digas quem foi o destinatário da dita, se é que posso

    saber!

    A referência ao "chefe dos correios" confirma o conceito que eu tinha

    da pessoa! Sou um pouco radical com "essa gente" e. por via disso

    tenho muito poucos amigos!

    Obrigado por me teres dado a oportunidade de ler um texto que me transportou

    para um tempo que me deixa muitas saudades!...

    Um forte abraço do teu amigo

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    1. OBRIGADO QUERIDO AMIGO PELO TEU COMENTÁRIO À CRÓNICA ESCRITA POR ESTE ESCRIBA. QUANTO AOS AMIGOS, MAIS VALE POUCOS E QUE ESTES SEJAM EFECTIVAMENTE DOS MELHORES.


      (O COMENTÁRIO ACIMA DESCRITO FOI ENVIADO POR UM GRANDE AMIGO ATRAVÉS DE E-MAIL.)

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  6. sebastiaobatista6@gmail.com3 de setembro de 2013 às 23:33

    Uma narrativa fluente sem carga a mais. Gostei, Victor!

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