REBIMBA O MALHO

REBIMBA O MALHO

quarta-feira, 19 de maio de 2010

UM CONDISCIPULO

UM CONDISCÍPULO

Na Instrução Primária tive um condiscípulo que me deixou marcas indeléveis, apesar de tantos anos já decorridos. Não há visita que faça ao passado que não me apareça a figura daquela criança com olhar triste estampado numa cara magra e sofredora. Entrava na escola quase sempre depois da aula já ter começado. O professor  invectivava-o sem que antes procurasse saber o motivo e, ele recebia as admoestações sempre de cabeça baixa, de olhos marejados e de corpito numa tremura.
Em casa deste meu colega, não deveria haver sequer o essencial, para sustento do agregado familiar e, além disso, tinha tarefas a cumprir impostas pelos pais. Não gozava das brincadeiras como todos os outros da sua idade. O tempo era para guardar os irmãos mais novos.
Era no Inverno que esta alma mais sofria como acontece, aliás, com todos os desafortunados.
Naquele tempo, a Panasqueira era assolada pelos mais duros e medonhos invernos. As ventanias ululantes açoitavam as chuvas copiosas; o frio cortante enregelava os corpos e encaramelava a terra - o códão - e os nevões sempre deslumbtantes que se alegravam alguns, entristeciam muitos mais.
Neste dias entrava na escola transido. A cobri-lo tinha uma camisa leve com as mangas abotoadas acima dos pulsos e, as calças de fazenda fina e puída terminavam na meia canela. Uma saca de serapilheira na forma de capucho que lhe cobria a cabeça e descia pelas costas, era o único abafo com que enfrentava os temporais.
A água da chuva escorria-lhe dos cabelitos curtos; as faces eram ruborizadas pela acção do frio; o muco nasal escorria terminando no limite do lábio superior e os pés, meu Deus... Nuinhos!
Depois de retirar o resguardo de pobre, sentava-se no banco da sua carteira, a última da fila, - as últimas carteiras eram destinadas aos que não tinham grande aproveitamento escolar - com a roupa colada ao corpo.
O professor, omnipotente, falho de humanidade, abordava-o e, em vez de o dirigir para junto da fonte de calor que a escola possuia, a fim de o aquecer e secar, em vez disso, apodava-o de... "o Ranhosito"! Os seus companheiros, para mostrarem agrado e cairem nas graças do mestre, riam. E tantas foram as vezes, que a alcunha pegou e, para sempre carregou com esse estigma.
Chamava-se como eu  mas quem se lembrará hoje deste ser, com o seu verdadeiro nome? Talvez poucos ou ninguém. Porém, aos do nosso tempo, se perguntarem pelo Ranhosito, aí sim, muitos com certeza se lembrarão.
Teve, ou melhor tivemos, a pouca sorte de nos calhar um professor deste jaez que renegou a protecção, a amizade, a paternidade, para em vez disso, achincalhar a pobreza e a humildade, e o mais grave, alcunhar uma criança que o único "pecado" possivel era o de ser pobre.
Este condiscípulo, tão tenro de idade, tão franzino de corpo e, já tão ajoujado pelo peso da vida.
É pela atitude deste professor - Armando de seu nome - e por todos aqueles destituídos de humanidade, para com o próximo, que com gana..
. REBIMBA O MALHO!


Conde da Gardunha

2 comentários:

  1. MEU CARO,
    ESTA TEU ARTIGO MEXEU COMIGO.NÃO ME LEMBRO DO "RANHOSITO" QUE REFERES,O QUE É NATURAL,POIS MUITOS ANOS DECORRERAM.MAS,QUANTOS OUTROS OUTROS "RANHOSITOS",NÃO PASSARAM POR AQUELA TERRA?UNS PELAS ARGURAS IDÊNTICAS ÀS SOFRIDAS PELO NOSSO CONDISCÍPULO,OUTRAS,PELAS MESMA RAZÕES,COM A AGRAVANTE DA ORFANDADE SE LHES TER OCORRIDO,EM TENRA IDADE.
    ERA UMA "PUTA DE VIDA VICTOR".E MAIS "PUTA" ERA AÍNDA,PORQUE,ALIMENTADA POR UMA SÉRIE DE "CANASTRÕES"E,UM DOS QUAIS JÁ REFERIDOS POR TI.ERAM UMA "CORJA" DE VAMPIROS,VAMPIROS IGUAIS AOS DENUNCIADOS PELO ZECA AFONSO,NUMA DAS SUAS BALADAS.
    OLHA VICTOR,DE VEZ EM QUANDO,ENCONTRO ALGUNS DOS QUE FORAM "RANHOSITOS",E.NÃO CALCULAS O PRAZER/GOZO,QUE ME DÁ, VÊR QUE OS MESMOS CONSEGUIRAM ESTANCAR O "MUCO", DE MODO A SE APRESENTAREM COM UMA VIDA,BEM REALIZADA.
    BEM...VICTOR,ANTES QUE ENTRE EM PRANTO:FIM DE COMENTÁRIO.
    UM ABRAÇO.

    ResponderEliminar
  2. O Victor Serra e o seu poder de observação enquanto moço!
    Lembro-me do "ranhosito" e a forma como o retratas, enquadrado na tempo e no modo, são
    dignos de um qualquer clássico da nossa litaratura!
    Mas o que me impressiona é que consegues com
    os teus escritos transportar-me para uma
    época de cujos pormenores já não me lembrava!
    Parabéns, Victor!
    Um abraço do teu amigo
    António Marques

    ResponderEliminar