REBIMBA O MALHO

REBIMBA O MALHO

domingo, 18 de novembro de 2012

"UMA CARTA" (SEGUIMENTO E FINAL)

"UMA CARTA" ( SEGUIMENTO E FINAL)

Por momentos, vi aquela praça fervilhar de gente nos dias de pagamento. Ali acudia todo o género de comerciantes expondo cada um o seu produto espalhado pelo chão, salvo os hortícolas que ficavam nos cestos de verga. Tudo ali se encontrava, até o ouro estava presente na mala verde do Sr. Rato, o ourives quase residente; também os livrinhos que segundo eu creio, eram da editora Majora: o João Soldado, A princesa Magalona ou o Ali babá e os Quarenta Ladrões e outros que já não me lembro dos títulos. Mas, o que reunia mais gente à sua volta, era o já desaparecido Banha da Cobra. Este género de pessoas tinha regra geral uma verve fácil, com gestos largos e por isso, não era difícil prender a atenção do povo, um povo naquela altura ingénuo e com uma grande taxa de iliteracia. O produto apregoado tinha as mais variadas propriedades desde abrir o apetite até ao crescimento de uma farta cabeleira na mais luzidia careca, passando por eliminar o calo mais renitente ou a cura do hemorroidal. E as gentes que por natureza eram crentes, e o que mais desejavam era livrarem-se das suas maleitas, embarcavam naquela nau de ilusões. E o homem gritava: um frasco para aquele senhor da esquerda, dois para aquele da direita, não esquecendo os três daquela menina. E a menina ficava da cor da romã.
Mas, o comerciante principal, o comerciante residente, deixei-o propositadamente para último. Decerto meu amigo que já adivinhaste de quem se trata. Ele merece uma referência, à parte de todos os outros não fosse ele um vendedor de sonhos principalmente para a criançada. Por vezes, não passava disso mesmo, de sonhos que não se concretizavam. Os pais, de certeza a contra gosto, não podiam transformar os sonhos dos filhos em realidade pela manifesta falta de recursos financeiros. O dinheiro por vezes era insuficiente para o governo da casa. Pois é desse homem que falo como já adivinhaste. Um comerciante tendeiro, bem-humorado, sempre de laracha afiada, de estatura baixa e por ter um defeito numa perna, mancava acentuadamente. Ora bem, na tenda do Ti Manuel João, havia quase de tudo. Era um mundo fascinante que fazia brilhar os olhos cobiçosos dos mais pequenos que se estendiam ao pião com a respectiva baraça, ao espelho redondo que do lado oposto tinha uma figura representando jogadores do Benfica ou do Sporting, ao pífaro de lata, a um artefacto de barro com bocal e dois furos em cima que assoprando e alternando os dois dedos imitava na perfeição o canto do cuco, ou ao realejo ou gaita-de-beiços ou, como se chama agora, harmónica bocal. Parece que estou a vê-las: eram belas, brilhantes e, a envolve-las, tinham um papel branco encerado e depois metidas numa caixinha de cor verde com uma minhota estampada. O preço era consoante o número de vozes que tivesse que ia a partir das doze vozes. Num Natal e porque durante o ano me tinha portado bem, o Menino Jesus e não o pai natal, achou por bem fazer essa oferta. Bem-haja Ele.
Pronto amigo, aqui fica expresso a minha pequena homenagem a um homem que ganhando a vida com o seu negócio de tendeiro, também é certo que de algum modo facilitou a vida de muitas pessoas proporcionando-lhes o artigo que necessitavam e que de outra maneira teriam de se deslocar mais longe para o adquirir.
Mais uns metros e chego perto da capelinha. Santo Deus, no adro, junto ao muro, ainda lá estão garbosas as duas árvores (plátanos) que sempre conheci: saudei-as com um sorriso. Quantas pessoas, essencialmente homens, se acolheram debaixo das suas copas frondosas, recebendo a sombra amiga. Quantas conversas francas ou sussurradas elas escutaram e a quantos serviram de encosto. Árvores protectoras que sempre acolheram quem as procurava. Oxalá que todos os que ainda lá vivem, as preservem. Seria ingratidão maltratar quem sempre nos acolheu.
Entrei no templo com uma forte emoção pois foi dentro daquelas quatro paredes que recebi os primeiros ensinamentos que me permitiram entrar para a grande comunidade católica tal como aconteceu contigo e tantos outros nossos amigos. O meu olhar abarcou tudo quase simultaneamente e logo me apercebi que algumas coisas tinham mudado como a retirada do púlpito. O púlpito era um reduto simpático utilizado normalmente nos actos religiosos de mais cerimónia. Dali, o pregador ficava mais visível.
Também dei pela falta do confessionário, uma casinha que era para mim enquanto criança, um esconderijo misterioso. O confessor estava escondido, e as mulheres embiocadas com véus, lenços de cabeça ou xailes bem puxados para o rosto, ajoelhavam e o cicio de ambos dava a impressão que eram cúmplices dos mesmos pecados. Quantas consciências pesadas ali foram aliviadas. Ali, de joelhos, todos se humilham e humildam e confiam num semelhante também ele pecador. Eu já nessa altura achava que era uma violência e uma submissão escusada perpetrada pelos homens.
Agora meu amigo sabes o que colocaram nas paredes laterais? Dois grandes painéis de azulejo azul representado a vida da Santa Bárbara, dei-lhe valor e para mim uma novidade. Sabes quem os ofereceu? Um, foi o povo das Minas e não me causou estranheza sabendo como é esta gente, sempre disponível. Quanto ao outro, ah, quando li o nome do ofertante, nem queiras saber o meu espanto e a vontade rir que me deu. A personagem podia ao menos ser modesta e prescindir de honras colocando somente por exemplo: oferta de um anónimo; oferta de um homem desta terra ou oferta de um devoto, mas não. O homem pretendeu perpetuar-se. O seu nome? António Francisco da Cruz. Lembras-te dele A…? É escusado dizer mais, mas com certeza que quis apagar do colectivo certas memórias nada abonatórias e fazer negócio com o Altíssimo.
Outra coisa que dei pela sua falta foi a ausência da água-benta nas tradicionais pias de pedra, onde todo o bom católico para ficar purificado e de bem com Deus tinha que primeiro passar a mão direita por aquela água quando não a chafurdava mesmo. Quanto mais quantidade, mais purificado.
Em suma: já não é aquela capela arrumadinha, florida, com espaço bastante na capela-mor que a encontrei atafulhada e sem gosto. Jamais será igual como naquela noite já velha em que um grupo de rapazes bem comportados, entraram naquele lugar de culto a fim de visitar o Sagrado Lausperene que estaria exposto até ao amanhecer. Lembras-te? Devido ao adiantado da hora, não estavam muitas pessoas, mas todas se voltaram para trás quando aquele grupinho de jovens elevou as suas vozes num cântico ao Senhor. Foi bonito e ainda hoje rejubilo e sinto saudades sempre que recordo esse episódio.
Finda esta visita, ainda dei um salto à galeria 6 e, do alto do aterro, contemplei por momentos aquele vale que por um caminho passavam carros puxados por juntas de vacas e cujas rodas chiavam numa toada alegre.
Olhei a ladeira que tantas vezes subi e que vai dar ao campo de futebol que bifurcava para um grupo de casas onde vivi enquanto menino. Tinha como vizinhos o Sr. Monteiro que nas horas vagas trabalhava numa sua oficina de latoaria. O Sr. Alfredo Tomás, quase sempre ausente. O tal Sr. Tavares motorista do director que depois deu lugar ao Ti Albino Duarte. “O Eng.º Sonda”.
Aqui vivi quase que posso afirmar, os melhores anos desde a meninice até à primeira juventude. Fui feliz porque tive tudo sendo  esse tudo, quase nada. Os meus bens materiais que adorava, cabiam todos eles nos dois bolsos das calças ou do calção: o pião, o berlinde e a fisga e nas mãos transportava os dois paus da bilharda. Diz-me lá meu amigo, o que mais podia almejar? Que maior riqueza poderia ter? Como me sentia rico e mais do que isso, feliz!
A minha visita estava quase no final. Porém, não podia despedir-me sem entrar no clube. Eram 17 horas quando abriram as portas. Entrei e num relance verifiquei que nenhum dos presentes me era familiar. Todas as caras me eram desconhecidas, aliás, durante esta visita não vi uma pessoa do meu e nosso tempo. Senti-me um estranho na minha própria casa.
Quando tomava uma bebida sentado placidamente a uma mesa, dirigiu-se-me uma jovem querendo saber se eu ali tinha vivido. Satisfeita a sua curiosidade, perguntou-me logo de seguida se tinha conhecido o Ti Zé Moreira, claro que sim respondi.  Naquele tempo, não havia ali ninguém estranho todos se conheciam, pese embora, os milhares de pessoas que residiam no couto mineiro. A moça revelou que era filha do Luciano. Tive a sensação que havia amargura e que algo atormentava aquela alma. Desconhecia por completo a sua vivência enquanto menina mas, também nada lhe perguntei e nem eram contas do meu rosário. Mas, ela falou do pai que tinha falecido ainda novo e da mãe que não sabia do seu paradeiro, apesar de ter feito diligências para a encontrar. Fiquei impressionado com o drama daquela ainda jovem rapariga. São afinal as malhas de uma rede que a vida tece.
Estive no clube pouco tempo mas o suficiente para relembrar certos casos e muitas pessoas. Vi o Ti Zé Leal o homem que geria o bar e só ele com a sua inesgotável paciência podia aturar todos aqueles já com um grão na asa; o Palpito, homem de envergadura, impulsivo e de uma farta cabeleira branca e já agora, pai de uma moçoila de curvas generosas; o Toninho da Mata o pata larga porventura o homem mais bem-parecido do lugar e arredores. Benza-o Deus; o Ti Alípio, natural de Casegas se não me engano, sempre misterioso nas suas conquistas amorosas, amante da noite e um pouco lobo solitário como convinha, claro; o Ti Jerónimo (carniceiro) que numa linda tarde de verão a um Domingo já bem bebido, desandou estrada abaixo levando uma das cadeiras do clube à cabeça que a tinha surripiado sem ninguém lhe ter dito o que seja, ao mesmo tempo ia gritando que era a parte dele, a parte que lhe cabia; o Ti Almeida, meu querido amigo que me tratava carinhosamente por um diminutivo e a cada passo dizia que tinha andado comigo ao colo o que era verdade. Homem bom! De estatura meã e de porte franzino mas rijo como o granito. Era polivalente: jogador de futebol, treinador e massagista, funções que desempenhava no Grupo Desportivo Mineiro. Benfiquista até à medula e que por isso deu motivo a uma cena de pancadaria dentro do clube. Quando o Benfica foi pela primeira vez campeão europeu, logo após o final do jogo, o nosso amigo Almeida com mais três amigos fizeram uma entrada triunfal no clube empunhando na mão direita uma taça mas uma taça de troféu e cheia de vinho da qual iam beberricando. Quem não gostou da brincadeira tomando-a como uma provocação, foram os Sportinguistas e principalmente o Silva. Só sei que as cadeiras e bancos voavam e não eram de plástico mas com a estrutura de ferro e assento de grossa madeira.
Lembrei-me do Ti Diga-Diga, pessoa pacata. Gostava dele apesar das poucas conversas que tivemos, era parco nas palavras; o Ti Manel Pilatos que era um regá-lo vê-lo adoçar o café. Naquele tempo usavam-se ainda os açucareiros. Descontraído e sem cerimónia, depois de despejar para a chávena umas quantas colheradas, era com essa mesma colher, a do açucareiro, que mexia e provava e, se já estivesse ao gosto do seu paladar guloso, pousava-a dentro do recipiente. Mas, a colherzinha que acompanhava o café, também lhe dava uso., era para depois de bebido, rapar o açúcar acumulado no fundo da chávena; o António Abrantes que o recordei com bastante saudade, quando lhe dava um abraço, parecia que abraçava um mundo; o Zé Albano, rapaz sempre muito arrumadinho e educado. Ainda hoje estou para saber qual a técnica que empregava para que os sapatos andassem tão brilhantes como espelhos; o Pedro Serrano, rapaz calmo e discreto; o Amândio Nunes e os seus irmãos: Belmiro, Aurélio e Horácio mais conhecido na altura por Falhinho; os irmãos Ventura, Luís e Mário, este era o fotógrafo; o Tonito 25, também discreto; o Zé Panaita (esquecem-se os nomes e ficam as alcunhas); o nosso Manuel Amarante que nos deixou antes do tempo; o Adelino que o recordo com uma jaqueta de flanela aos quadrados, gravata berrante e óculos escuros com aros amarelos, ofertas vindas da América enviadas por um familiar; os irmãos António e José Marques sempre prestáveis; o João maquinista que nos oferecia à porta do clube espectáculos de equilibrismo na sua bicicleta; o Manuel Cabral que faleceu num acidente de trabalho no estrangeiro; o Chaves que os miúdos adoravam; os irmãos Serrão: Joaquim, Manuel, José e o António; o Bandeira, exímio no bilhar e xadrez. Enfim, tantos e tantos outros poderiam ter sido evocados mas foram estes os que vieram à memória.
Os lugares que não visitei, ficarão para uma outra oportunidade se tiver vida e saúde.
Parti dali com um travo agridoce. Por um lado, matei as saudades daqueles sítios e por outro, as saudades das pessoas que me eram queridas, avivaram.
Sabia que a carta seria longa mas nunca deste tamanho. Desculpa. Foi um abuso, tenho consciência disso.
Recomendações à tua mulher e para ti, um abraço fraternal do teu amigo de sempre
                                                                                         
CONDE DA GARDUNHA

1 comentário:

  1. sebastiaobatista6@gmail.com3 de setembro de 2013 às 22:50

    Memória fenomenal, Victor! Leitura cativante. Quando leio um livro, tenho o mau hábito de saltar as páginas, quando o autor se perde em divagacoes supérfluas. Aqui, deixei-me prender por cada linha escrita.

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